LIÇÕES DE UM CIRCO EM 1942

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TEXTO: JORNAL FOLHA PATENSE (1942)

Não há muito, estava em Patos, uma cidadezinha poeirenta colocada numa larga chapada ao pé de uma serra recoberta de luxuriante verdura.

Na cidade, nada havia que fazer, e, à noite, como passasse uma lira sertaneja, martelando um surdo tambor com cadência de instrumentos africanos, resolvi chegar até um circo, armado em uma praça triangular. O movimento era grande, e algumas moças bonitas entravam, enquanto alguns garotos vaiavam uma vendedora de café para que os companheiros, na distração dos vigias, pudessem varar por baixo do pano. Comprei a minha entrada na dificuldade dos empurrões e da classica falta de troco que há pelo sertão. Instalei-me na terceira fila da bancada, e lancei o meu primeiro olhar pelo anfiteatro. A companhia era pobre, e o taboado das gerais estava em péssimo estado. Perto de mim, assentavam-se dois rapazes, ambos pelos seus vinte anos, alegres, e conhecedores dos segredos da terra. Falavam alto, de maneira que pude ouvir o que diziam. Um chamava-se Geraldo e o outro Benedito. O primeiro sorria para todos e calculava a fortuna de cada um que passava, enquanto que o segundo, em voz de desenho animado, gargalhava com a maldade e ironia ferinas. Puz-me a escutá-los, e com eles a estudar os tipos que enchiam a vasta barraca de panos sujos. Como não os conhecia, não pude fazer-lhes perguntas que me roíam a curiosidade.

Atraz de nós uma morena sorna como um raio de sol, e as covinhas de seu rosto cor de jambo maduro, lembraram-se a figura de Anatole, que as tinham tão lindas que pareciam ninhos de beijos. O Geraldo, o mais alegre e que falava sorrindo, explicava, percorrendo com os olhos as cadeiras cheias dos reservados. Olha, lá, o Joaquim Padeiro, se ele pudesse fazer um discurso ali… E aquele granfino que não tem um vintem no bolso, sentado com aquele barbeiro metido! Passou um gordo de capa, que disseram ser jogador, e se refastelou senhorialmente numa cadeira. Para frente havia um grupo numeroso de mundanas, algumas das quais sorriam para um velho capitalista que ainda se julga conquistador.

E assim falando o Geraldo e o Benedito passaram em revista todos os assistentes das cadeiras numeradas. Do que falaram, conclui que quem se assenta em reservados em circo de cavalinhos, na friorenta terra de Patos, ou gosta de fazer discursos, ou é jogador; mundanas elegantes ou granfinos quebrados. Eu cá comigo murmurei: nunca mais irei assentar-me lá pela frente, e aprendi mais esta lição.

Apareceram os primeiros trabalhos. Como sempre velhos e enfadonhos. Um palhaço a repetir velhas sandices, há quarenta anos conhecidas de todos. Mesmo assim, havia quem achava graça. Eram almas candidas na opinião do meu vizinho Benedito.

No intervalo, começaram eles a percorrer as bancadas. Nas primeiras filas estavam os respeitáveis, os que negociam em feijão, os moralistas, os burgueses ricos, os coletores e todos os Acàcios da cidade. Um de chapeu grande, fumava charuto, para impressionar aos pobres, e perto do capitalista, enrolava o seu palha para sugestionar com a sua modéstia… Uma solteirona, chefe de uma irmandade local, fulminava com olhares alguns rapazinhos que admiravam as pernas das pequenas artistas que jogavam bolas lá pelo picadeiro.

Nas bancadas do meio estavam as moças que não têm namorados, os rapazes que gostam de ser serios, e que pretendem, brevemente, descer para as primeiras, as velhas complacentes, as professoras austeras, as operarias humildes, enfim, a classe media, isto é, os que olham a vida sem arroubos e sem desanimos.

Mas e na ùltima bancada, aquela junto ao pano, de tão dificil acesso? Fiz essa pergunta a mim mesmo, e esperava que o Geraldo e Benedito m’a respondessem.

Lá num palco grande, iniciaram um dramalhão qualquer. Num intervalo, o meu Geraldo, disse: “Olha, Benedito, a ultima bancada é a bancada do amor. Lá só tomam logar os namorados. Aqui é dificel de olhar para traz. De longe, ninguém verá os arrolhos de rolas, e quem està perto tem dificuldades de virar. Nas costas está um pano frio, e o frio que faz convida a uma doce intimidade”.

Neste ponto, o Geraldo e Benedito, ao convite de dois olhares, subiram à ultima bancada, e eu não mais pude obter informações da gente do circo, na fria cidade do sertão de Minas.

A lição, no entanto, ficará. Até num pobre circo de cavalinhos, pode-se observar a diferença das coisas, e a diferença da sorte. E na harmonia destes contrastes está o equilibrio do mundo. Bem razão tinha o filosofo da Alemanha.

* Fonte: Texto publicado com o título “Lições de um Circo” na edição de 02 de agosto de 1942 do jornal Folha de Patos, do arquivo da Fundação Casa da Cultura do Milho.

* Foto: Trecho original do referido artigo.

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