À PORTA DE UM HOTEL EM 1942

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TEXTO: JORNAL FOLHA DE PATOS (1942)

Quem viaja muito vê, e tem sempre muito que contar. Os usos e costumes, as variedades de tipos humanos, os panoramas, os aspectos, as cousas diferentes deixam sempre traços na memoria e, ás vezes recordações de sabor agradavel.

Assim, as minhas viagens pelas bandas do oeste de Minas, em uma de suas mais interessantes cidades, Patos, vi cousas que chamaram a minha atenção pela sua originalidade. Ali, por exemplo, o nosso FOOTING chama-se VAI-VEM, denominação, aliás muito mais expressiva do que o termo inglês, empregado pela nossa mania de imitação. Na rua principal da cidade, à noite, reunem-se as moças e rapazes para passeio em determinado quarteirão. Neste quarteirão localizam-se os hoteis da cidade. Viajante, hospedava-me em um deles. Entre outros hospedes havia tipos curiosos, como sempre, pelo interior, eram os caixeiros-viajantes os que mais se salientavam, discutindo com todos e sobre todos os assuntos. Faladores e impertinentes martelavam a comida dos hoteis, e de um diziam horrores do café. Um chegava mesmo a dizer que cidade que tinha fama de ser grande centro produtor de cereais não passava da terra da miseria à vista da BOIA fornecida pelos hoteleiros. Eu que vinha da vizinha cidade de Patrocinio, julguei exageradas as diatribes dos cometas, porque, naquele particular, o seu hotel ganhava longe daquele em que eu me hospedava.

Voltando, porem, a observar a cidade, seus usos e costumes, à hora do vai e vem, puz-me à porta do meu hotel a ver o povo que passava. De inicio, descobri os meus vizinhos da noite anterior no espetaculo do circo de cavalinhos¹. Estavam perto de um caminhão parado em frente ao hotel. Assim, pude aproximar-me deles, sem ser visto, e ouvir-lhes a conversa. Logo, passaram algumas senhoritas. Nenhuma delas tinha frio, bem que a temperatura fosse muito baixa, e duas delas usassem oculos contra a luz solar, embora, segundo o vizinho Geraldo, a cidade estivesse ás escuras. Um cavalheiro, homem de meia idade, com ares um tanto pedantes, de fisionomia parada e severa, mãos às costas, caminhava vagarosamente, pela calçada e como não fosse conhecido do Geraldo e do Benedito, êstes se dirigiram a um outro tipo que ia e vinha, e indagaram, ao que este respondeu não conhecer, mas julgava estar frente a um personagem de Dostoievsky.

Momentos depois, virou a esquina próxima um individuo todo sujo de branco e que deblaterava, gesticulando dizendo cobras e lagartos contra a Prefeitura local que permitia os particulares encherem os passeios com material de construção, nas ruas escuras. E’ que havia caído dentro de um deposito de cal, em plena via publica.

Pouco adeante havia uma roda numerosa. Eram os boiadeiros que discutiam os negocios. O meu amigo Benedito explicava que eles contavam as moças que passavam e lhe avaliavam o preço. Um chegava mesmo a chamar a porta do Hotel visinho de “porteira de contar”. Alem, estava outra roda. Esta era a do futebol. Discutiam em altas vozes um jogo realizado lá pelo Rio, á falta do futebol local. Ha certa hora, o movimento era intenso. Muita moça, muito rapaz, muita poeira, muito frio, pouca luz. Na confeitaria vizinha, onde nada havia para vender, uns meninos brigavam, e, á porta do cinema, onde a policia não ia, aprontavam êles uma infernal algazarra.

Os meus vizinhos deixaram o vai e vem e se dirigiram para o cinema². Acompanhei-os de longe. Na porta, havia um cartaz, onde Marlene Dietrich mostrava as suas famosas pernas, as mais lindas de Hollywood. Exibiam uma fita em serie, e por isso a meninada vibrava de emoção e de impaciencia pelo inicio do espetaculo. Com dificuldade, e em meio de empurrões, consegui comprar o meu bilhete. Na entrada, um porteiro deu-me um papel em forma de memorandum comercial. O homem tinha uma atitude de triunfo esmagador. Um individuo ao lado não quiz ler porque julgou ser carta de cobrança.

Numa vasta sala, frouxamente iluminada, tomei lugar atraz de meus desconhecidos amigos Geraldo e Benedito. As crianças corriam e brincavam, e era divertido.

O papel que me dera o porteiro encerrava uma resposta do proprietário do cinema², a uma reclamação do jornaleco local. Alegava que os defeitos de projeção originaram-se da falta de força fornecida pela Prefeitura, naturalmente depois de tecer rasgados elogios ao exmo. Sr. Prefeito³.

A sala ficou escura e começou a função. Logo e logo, no jornal nacional, os quadros começaram a andar e por fim arrebentou-se a fita. O Geraldo comentou imediatamente e, virando-se para o vizinho Benedito, disse: “Arrebentou por falta de força, e você nada tem que achar ruim”. Atraz de mim, estralava uma risada capadoçal.

A nossa esquerda, uma elegante senhorita sorria ao namorado que estava na outra fila. O Benedito comentava que era ela a Marlene da terra, isto é, tinha as mais belas pernas da cidade. E quando a proza ia neste meio, a linda loira, abaixou-se bruscamente, e coçou a perna escultural. O Geraldo que havia visto, comentou que as pulgas ali viviam porque não havia força e que aquela pulga era a mais sabida de todas. O Benedito deu uma gargalhada que se confundiu com o vozeiro das crianças. Aquela rizada era a resposta do jornaleco local aos boletins da emprêza ofendida.

* 1: Leia “Lições de um Circo em 1942”.

* 2: Leia “Cine Tupã”.

* 3: Clarimundo José da Fonseca Sobrinho (Prefeito Camundinho).

* Fonte: Texto publicado com o título “À Porta de um Hotel” na edição de 09 de agosto de 1942 do jornal Folha de Patos, do arquivo da Fundação Casa da Cultura do Milho.

* Foto: Trecho original do citado texto.

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