MULHER E O GATO, A

Postado por e arquivado em ARTES, FERNANDO KITZINGER DANNEMANN, LITERATURA.

Ninguém há de negar que Periquitinho Verde cresceu muito nas duas últimas décadas, e o resultado desse “espichamento horizontal” – como gosta de enfatizar o Zé Corneteiro, pródigo divulgador do verídico e do mais ou menos pelos lugares por onde passa – está aí mesmo, à vista de todos, bastando a qualquer um olhar para os quatro lados da cidade e constatar a veracidade dessa informação.

Realmente, no decorrer desse período muitos bairros foram criados no entorno da antiga zona urbana periquitinhoverdense, e como quase todos os habitantes de alguns deles, principalmente os mais distantes, não estão com essa bola toda quando o assunto é dinheiro, não é preciso ser doutor para perceber que o mês desse pessoal é sempre muito maior do que o tempo de vida dos seus salários. A conclusão lógica, em bom português, é que eles são mais quebrados que arroz de terceira.

O que não significa dizer que devam ficar sem os serviços públicos essenciais, porque essa é uma obrigação do governo para com os coitados que o mantém no bem-bom. Um desses serviços é o do transporte coletivo urbano, e é aí que chegamos ao que realmente interessa, já que entra na história a Viação Passarinho Azul, empresa de ônibus cujos veículos cruzam a cidade em percursos bairro a bairro, inclusive o que liga Alto do Morro ao Jardim dos Paulistas. Seus motoristas são instruídos quanto à necessidade de evitar problemas com os usuários, mas como o imprevisível tem esse nome porque nunca se sabe o que está esperando a gente na próxima esquina, aconteceu que no início da tarde de uma quarta feira sufocante, o Zé Sinfrônio, que vinha conduzindo um desses coletivos de lá para cá, parou em um dos pontos para pegar três passageiros que desejavam embarcar, dois homens e uma mulher. Esta foi a primeira a tentar subir, mas assim que pisou no degrau da entrada o Zé Sinfrônio percebeu que ela conduzia uma caixa de papelão sob o braço esquerdo, e dentro da mesma, um gato. Então ele avisou à passageira que o transporte de animais não era permitido, e foi aí que o qüiproquó começou:

– O que é que você está querendo dizer com isso?

– Que a senhora não pode embarcar com esse gato.

– Não posso? Por quê?

– Porque não é permitido.

– Acontece que o meu gato está doente e eu preciso levá-lo ao veterinário.

– Sinto muito, mas no ônibus não vai ser possível.

– E quem é que vai impedir?

– Ninguém, mas se a senhora insistir, eu não saio com o ônibus do ponto.

– Ainda mais essa…

– Eu só estou cumprindo ordem, dona.

– Deixe de leréia, cara! Dá pra saber por que você está criando caso comigo?

– Eu não estou criando nenhum caso. Só estou cumprindo a lei.

Nessa altura, já irritada, a mulher deixou extravasar sua contrariedade:

– Quer saber de uma coisa, moço? Pega essa sua lei e enfia naquele lugar, ouviu?…

E o motorista respondeu na bucha:

– Ouvi. E se a senhora fizer a mesma coisa com o gato, então poderá embarcar no meu ônibus.

Aí o homem que vinha logo atrás deu uma de nervoso e gritou que ninguém falava daquele jeito com a mãe dele, o trocador na mesma hora levantou-se da cadeirinha onde ficava sentado e postou-se ao lado do colega para mostrar que com eles dois não tinha meu pé me dói, o buraco era mais embaixo, na base de um por todos e todos por um.

Alguns passageiros começaram a reclamar que estavam em cima da hora para pegar no batente, mas como ninguém podia entrar ou sair do ônibus porque a dona do gato continuava esbravejando sem arredar o pé do lugar, atravancando a passagem, a confusão foi aumentando, os carros que desciam a avenida começaram a parar para ver que rolo era aquele, os moradores das redondezas foram chegando aos poucos, curiosos, e ao cabo de uns quinze minutos até parecia que algum candidato a qualquer coisa ia pintar por ali querendo dar o seu recado sobre a próxima eleição.

Foi então que um carro da rádio-patrulha estacionou no local, ninguém sabe se por acaso ou atendendo à solicitação de alguém, e o sargento que desceu dele foi logo procurando se inteirar do que tinha acontecido. Como é desnecessário repetir todo o andamento do fato, pois ele já é conhecido, vamos então ao seu desfecho. Depois que alguns passageiros foram levados a um canto e ouvidos pelo militar, este voltou ao ônibus, acercou-se da mulher que se julgava ofendida, e falou:

– A senhora está alegando que foi destratada pelo motorista, não é mesmo?

– Exatamente.

– O que foi que ele lhe disse?

– O senhor vai me desculpar, mas eu não tenho coragem de repetir.

– Foi coisa feia.

– Foi.

Aí o filho da dona quis dar sua opinião sobre a gravidade do insulto, mas o policial o mandou calar a boca e continuou:

– A senhora queria entrar com o gato no ônibus?

– Queria.

– Mas isso não é possível. Tem uma lei proibindo o transporte de animais em coletivos, e o motorista que não cumpri-la pode até ser multado. A senhora sabe disso?

– Que não pode, fiquei sabendo hoje. Da multa, não.

– O motorista lhe avisou sobre essa proibição?

– Avisou.

– E o que foi que a senhora disse a ele?

– Não me lembro.

– Pelo que me consta, a senhora disse que era para ele enfiar a lei em algum lugar, não foi?

– Acho que foi. Mas não é o que o senhor está pensando.

– Sei. E ele respondeu que se a senhora fizesse o mesmo, poderia embarcar.

– Foi.

– E que lugar é esse a que a senhora se referiu?

– Bem, seu guarda… na verdade… quer dizer…  o que eu pensei foi que ele deveria guardar o livrinho da lei na sacola. Talvez ele tenha me entendido mal.

– E se ele lhe mandou fazer a mesma coisa com o gato, qual é o problema?

– Nenhum.

– Então por que é que a senhora aprontou essa confusão toda? Havia necessidade disso? Tenha a santa paciência…

Dizendo isso ele retornou à viatura e foi embora, o mesmo fazendo o motorista do ônibus, que já estava atrasado em seu horário. A mulher, coitada, não suportou os olhares críticos e sorrisos debochados da platéia feminina, e também se mandou a pé pela avenida, com o gato guardado na caixa, debaixo do braço, enquanto o filho a acompanhava reclamando inconformado que a mãe o colocava em cada uma…

Foi por causa dessa ocorrência que o Zé Sinfrônio ganhou o apelido de Zé Sacola, pelo qual continua sendo chamado até hoje pelos seus colegas da Viação Passarinho Azul.

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