PAZOLIANA − CAPÍTULO 19: GLORIFICAÇÃO DOS DEUSES

Postado por e arquivado em CANTINHO LITERÁRIO DO EITEL.

“Eu rezei por vinte anos, mas não recebi nenhuma resposta, até que rezei com as minhas pernas.” (Frederick Douglass, escravo fugitivo − 1818-1895)

Mesmo sendo altas horas da madrugada, a chegada dos resgatados foi um verdadeiro delírio para o povo convertido de Vila do Córrego Dobrado. Depois das devidas confraternizações, o povo se recolheu. Etnaduja passou algumas recomendações a Januário e se retirou. O distrito dormiu. No outro dia, os planos foram traçados. A notícia chegou a todos os ouvidos interessados, indo além da Vila. No próximo domingo, 10 de janeiro de 1982, haveria uma missa campal. Foi armado um altar no parque de exposições para aguardar a todos sabedores do evento. O pouco tempo passou célere. Padre Alaor proferiu uma bela missa sobre os louvores pazolianos. No final, convidou Januário para louvar palavras a Sued. Serenamente, ele se postou no ambão sem uma única folha de papel nas mãos. O silêncio era geral. Januário abaixou a cabeça por uns instantes. Todos o imitaram. Após, elevou as mãos ao céu. Todos o imitaram. Abaixadas as mãos, fixou o olhar naquela imensa plateia e começou a falar:

– Irmãos, no início era o caos. Os corações ardiam em chamas com a presença da ira, da inveja e da vingança. Por sobre os ares planavam nuvens tenebrosas que faziam chover gotas de sangue. O solo contaminado do planeta era manchado pelas trevas da morte. Seres humanos encardidos por sodomia e penúria vagavam como zumbis à procura do vago, pois nada existia na alma daquelas criaturas. Matava-se por causa de um piscar de olhos. A sanha era tanta que os seres humanos não mais se refletiam no espelho. Eram pálidos e fosforescentes ao mesmo tempo. Quando pálidos, vomitavam sobre seus semelhantes a ignomínia da discórdia. Quando fosforescentes, ofuscavam os olhos daqueles que não mais enxergavam. Tudo era caos. E no meio de todo aquele caos, se fez presente Sued. Uma aura de luz azul dominou aquele planeta pérfido. As criaturas se assustaram, mas não temeram. Onde havia aglomeração, lá aparecia Sued. Era sumariamente vilipendiado. Porém, nada abalava Sued. Assim, transfigurou-se pelo mundo durante anos infindáveis. Até que percebeu que não conseguiria salvar aquelas criaturas. Era preciso uma atitude compatível com a situação caótica em vigor. O câncer havia tomado todo o corpo do planeta Terra. Extirpá-lo não mais salvaria aquelas criaturas. Sued se pôs a pensar e viu que era boa a sua intenção. Não pretendia ferir nenhum daqueles seres que se alimentavam de caos. Resolveu se fazer permanentemente presente entre eles. Não para transformá-los, mas para substituí-los. Estava Ele no campo quando viu um lindo vegetal. Várias inflorescências lembravam uma bandeira branca, como se fosse uma bandeira da paz. Identificou-a como a espécie Spathiphyllum wallisii, conhecida por aquelas criaturas como Lírio da Paz. Que interessante, acedeu Sued, como uma planta tóxica¹ poderia ter relação com a paz? Seria a paz para aquelas criaturas tão próximas da morte, por isso se engalfinhavam no caos? Sued gostou daquela planta e resolveu adotá-la como símbolo de seu reino. Assim, do caos da toxicidade, surgiu o Lírio da Paz a enaltecer os novos desígnios. Sued viu que era bom, e assim se fez. Observai, irmãos, observai os Lírios da Paz. Ei-los à sua volta. Veja como são belos e como o nome paz se une aos seus contornos. Será o nosso símbolo. Louvado seja Sued!

– Louvado seja Sued! – gritaram todos.

– Anos pavorosos de escárnios e injúrias não desanimaram Sued. No meio da destruição iminente, descobriu alguns seres que poderiam se portar dignamente como seus representantes. Ordenou a uma criatura de nome Arnaldo que propagasse a mensagem da paz. Com ele, sua esposa Mabélia, seu filho Januário e as duas filhas, Mara e Sofia. A família prostrou-se com rosto em terra diante de Sued. Para eles, não havia dúvida: o novo Messias surgira do nada para transformar o nada em tudo. Arnaldo foi assassinado pela escória humana que reinava sobre todos, mas não sobre aquela família que, fervorosamente, glorificava Sued. Era necessária urgência, pois o caos tramava contra eles. Sued ergueu as mãos e delas o clamor da justiça se estabeleceu nos úteros de Mara e Sofia. As duas virgens geraram os dois primeiros entes da nova era. Assim se deu o início, para que a paz se espalhasse. Sued viu que era bom. Tão bom, que o caos foi sendo amenizado. Tão bom, que os horrendos sentimentos foram sendo substituídos pelos desígnios de Sued. Louvado seja meu pai na Terra que hoje está sentado ao lado direito de Sued. Louvado seja Sued!

– Louvado seja Sued! – clamaram as vozes.

– No início era o caos. No meio surgiu em forma de matéria a bondade de Sued. Não haverá fim, pois o fim está em Sued, e Sued é eterno. A matéria se solidificará em Sued Filho e Asued. Macho e fêmea, que germinaram nos úteros de Sofia e Mara o magma da salvação. Gloria ao espírito e à carne de Sued Filho e Asued. Os dois vão ser um só, formarão um só corpo, e deste um só brotarão quatro alicerces de concreto e aço polido. Serão os quatro pilares da nova terra. A Terra não se achará mais corroída pela inércia dos ímpios. Estes, perversos, vão perder terreno a cada junção do macho divino e da fêmea divina. De pilar em pilar, se erguerá a obra suprema de Sued, inatingível ao mais poderoso dos furacões. Os pilares da nova era comandarão as marés, as noites de luar e tudo o que é mutável. A inércia dos ímpios se afogará em seus próprios vômitos. Se olharem para a direita, lá estará o espírito arrebatador. Se olharem para a esquerda, lá estará a carne latejante. Se olharem para a frente, lá estará o útero sagrado. Se olharem para trás, lá estará o inferno ardendo em chamas nos ossos entulhados. Não haverá mais espaço para os pérfidos e sarcásticos homens em putrefação moral. Ou se arrebentarão nas lanças da misericórdia ou se engalfinharão nos antros encardidos de fel e gás carbônico. Até que não haverá mais o caos. O útero sagrado expelirá uma infinidade de pilares cárneos revestidos de concreto e aço polido. Será a bondade de Sued envolvendo todo o planeta. Planeta que é manchado pelo vermelho do sangue espúrio. Planeta que agora será azul real, dominado pelo Lírio da Paz. Louvado seja Sued, que fará chover sobre a face da Terra milhões, bilhões e até trilhões de Lírios da Paz. Que a paz esteja com todos, em nome de Sued. Louvado o nome do Messias!

– Louvado o nome do Messias! – repetiram todos.

– Desde o início, reina o homem. Sua mente será extirpada e servida de pasto aos vermes. Reinará o Pazoliano, o novo ser que dominará a nova era. Atentai-vos, irmãos pazolianos, não se afastem dos desígnios de Sued. Seus sonhos são o sonho de Sued. Suas realidades são a realidade de Sued. Do ovo sai a larva que se transforma em pupa. Da pupa sai a borboleta que segue a sua sina. Existe alternativa para a borboleta a não ser seguir a sua sina? Por que ela faz isso? É a vida, irmãos, a perpetuação da espécie. Pazolianos, vós sois o ovo, a larva, a pupa e a borboleta. Vós sois a transformação. Sued é a sina. Sigam a Sued, irmãos, porque Sued é a perpetuação da nova espécie. Não há ovo sem Sued. Não há larva sem Sued. Não há pupa sem Sued. Não há borboleta sem Sued. E não há sina sem Sued, porque Ele é tudo e é a sina, o único caminho para a perpetuação da espécie. Louvado seja o caminho de Sued!

– Louvado seja o caminho de Sued – repetiram todos numa só voz.

– Louvado seja Arnaldo meu pai que teve o seu sangue derramado por aqueles sem sina. Louvado seja minha mãe Mabélia, que nos deu a oportunidade de ser abençoada por Sued. Louvado seja eu, Januário, que perpetua o trabalho de meu pai. Louvadas minhas irmãs Mara e Sofia, que geraram os primeiros seres pazolianos. Louvados sejam meus parentes, que já se coordenam com a nova era. Louvado seja Padre Alaor, que se afastou daqueles dogmas saturados e mentirosos para se converter em Sued. Louvada seja Dona Filomena, que tão ardentemente se pôs aos pés de Sued. Louvado Zé Limão e seus amigos. Louvados todos aqueles que se deram as mãos e neste momento se encontram aqui na paz de Sued. Louvados todos nós, que agora somos os filhos de Sued. Irmãos, atentai para os nossos louvores. São eles como as hemácias que transportam oxigênio. São eles como o óvulo que recebe a fécula sagrada. São eles como o formato do Lírio da Paz. Irmãos, nossos louvores são a nossa sina. Assim como a borboleta que sai do casulo já sabendo o que fazer, o pazoliano que segue os nossos louvores não precisa de olhos para enxergar, de ouvidos para ouvir, de nariz para sentir os odores, de pés para caminhar e nem das mãos para se apoiar. Nossos louvores são os olhos, os ouvidos, o nariz, os pés e as mãos de Sued. Aleluia, aleluia, aleluia, mil vezes aleluia. Em nome de Sued. Que a paz esteja convosco! Obrigado, irmãos.

Quando Januário se afastou do ambão, o povo explodiu em euforias louvativas. Todos se abraçavam misturando-se às lagrimas mútuas. A população convertida da Vila e de outras localidades, excetuando os acamados, estava naquele momento reunida no parque de exposições, extasiados, tão extasiados que não perceberam a aproximação de um enorme contingente do Exército.

* 1: O Lírio da Paz possui uma substância (oxalato de cálcio), presente nas folhas, flores e látex, que se ingerida pode causar edemas, irritações de mucosas, salivação intença e dificuldade de deglutição.

* Texto: Eitel Teixeira Dannemann.

* Foto: Desenho e montagem de Eitel Teixeira Dannemann.

Compartilhe