RAIVA HYDROPHOBICA, A (SCENA DE SANGUE)

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RAIVATEXTO: DR. EUPHRASIO JOSÉ RODRIGUES (1905)

[…] a narrativa que passo a fazer de um facto que passou sob testemunho verdadeiro, e se vossos cabellos eriçarem tanto melhor, porque tereis mais cuidado com a introducção dos cães no meio de vossas familias.

Era pelos fins de 1888, peregrinava eu nos meus tempos de ferias pelos invios sertões de minha terra, quando o meu camarada me chamou attenção para duas cruzes, que estavam a beira do caminho perto do arraial C… A lua nesta occasião, occultava-se na fimbria de uma nuvem e allumiava-nos com a sua luz pallida de dentro de seu veo de gaze, e meditava eu nos barbaros assassinatos que se praticam em nossos invios sertões, de que são prova as innumeras cruzes que por ahi juncam as estradas, quando o meu camarada, homem quasi sexagenario tomou a palavra e nos falou assim: Patrão, não sabe o que significam estas cruzes no alto deste morro? Respondi-lhe negativamente, estas cruzes dizem que são milagrosas, e me narrou a historia que passo a contar:

Havia mais ou menos dez annos existiam neste logar, duas familias abastadas, alegres, uma verdadeira casa cheia, como se diz em linguagem vulgar; todas as noites palestravam em grande serão, manifestando a expressão de reciproca amizade, numa existia um filho unico, noutra existia uma filha unica, chamavam-se Raul e Hilda, nestes entes concretisavam seus paes todo amor, todo o carinho e todo o futuro; e cresceram Raul e Hilda na terna despreocupação da infancia, até que o amor lhes veio bater as portas do coração. Nem uma nuvem veio empanar aquelle céo cor de rosa, elle sentia ella tão sua, que não admittia que fosse disputal-a com quem quer que fosse, ella reclinava-se toda ao adejar de seus beijos e de seus carinhos, como a flor que se reclina debaixo das caricias da borboleta.

Veio um dia fatal, estavam os dous sentados em um banco rustico a sombra de um caramanchão, elle terno e amoroso, ella remirando-se nos olhos delle, quando um cão de Terra Nova, veio sentar-se á seus pés, uivando lugubremente, elle ao levar as mãos a cabeça do cão para acaricial-o, foi por este mordido, um simples arranhão, donde borbolhou uma gotta de sangue que elle limpou com seu lenço fino de cambraia, passaram-se mezes, e elle não se importou mais com este accidente; trataram o casamento, e assim foram indo, até que chegou o dia do consorcio; todos estavam alegres, gyrandolas de foguetes espoucavam nos ares, e elles satisfeitos foram deante do altar da Virgem jurar amor eterno. Depois das festas recolheram-se a camara nupcial, e ahi a portas fechadas, passou-se uma scena terrivel, elle preso de todos os accessos de loucura furiosa, mordia-a e mordia muito, até que arrancou-lhe os seios com os dentes; alguns convivas retardatarios, ouvindo os gritos lascinantes da victima, arrombaram a porta do quarto, e encontraram semimorta coberta de sangue, estendida no chão a victima, em quanto que seu esposo achava-se trepado na trave da casa em estado verdadeiramente desesperador então os circunstantes tomados de pasmo pelo que se tinha passado, e pelo que ainda se podia dar, consultaram-se um momento, e então, coisa horroroza, viu-se aquelles que tinham sido seus amigos de infancia serem obrigados a caçal-o a bacamarte, e quando elle rolou da trave foi cahir junto ao corpo da esposa e ahi abraçados deram o ultimo beijo da vida para morrer, aquelle beijo era puro como o de dous cherobins. E quando penso minha Santa Virgem, que vosso Divino filho veio ao mundo só para levar a alma da humanidade aos céos, penso tambem que aquellas duas almas voaram unidas, a sombra de uma, envolta pela luz da outra.

Leitores, cujas lagrymas talvez correram deante desta narrativa de horrôr, tomae precaução, quando virdes um cão encostado a casaria, orelhas pendentes, e uivos lúgubres, porque ai! daquelle que ousar perturbar a sua marcha; sentirá em breve as consequencias de sua imprudência.

Dr. E. J. Rodrigues.

* Fonte: Texto publicado na edição de 30 de novembro de 1905 do jornal O Trabalho, do arquivo do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão História (LEPEH) do Unipam.

* Foto: Racasonline.blogspot.com, meramente ilustrativa.

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