SUPOSITÓRIO, O

Postado por e arquivado em ARTES, FERNANDO KITZINGER DANNEMANN, LITERATURA.

O médico Jacinto Dores Incima, ou doutor Aiai, é o clínico geral do Hospital Municipal de Periquitinho Verde. Ele se tornou bem falado na cidade a partir do dia em que assumiu esse cargo naquele centro médico, oportunidade em que participou de um divertido episódio que se tornou conhecido como “o caso do homem que comeu bosta”, cuja repercussão obrigou o Zé Mico, que é o “tal”, a se mudar para a capital do país. Pois foi justamente a ele, médico, que o bancário Júlio César Pereira – apelidado de Hora Certa porque foi sempre o último a entrar e o primeiro a sair do serviço – se referiu durante conversa que mantinha com o advogado trabalhista Chico Silva, em uma manhã dessas quartas-feiras da vida.

O assunto era paciência, coisa que Júlio César havia deixado de lado quando certo cliente do banco onde trabalhava, desses graúdos metidos a bambambã, foi reclamar que seu cheque não poderia ter sido devolvido, mesmo já estando ele com o saldo da sua conta no vermelho. Os dois amigos concordavam que ela, a paciência, era uma virtude que tinha começo, meio e fim, como acontece com todas as coisas no mundo, mas que “a priori”, segundo palavras do bacharel em Direito, ninguém poderia avaliar qual o tamanho do “estopim” de quem a está tendo posta à prova.

– Isso “vareia”, como diz o Juca Amaro – alegou o Júlio César, – porque depende do dia, da hora, do momento, entendeu?

– Não concordo – respondeu o Chico. – Os homens trazem consigo uma reserva de paciência que é igual para todos porque a natureza distribui igualmente esse dom entre as pessoas, sem distinção de sexo, de cor, de raça, ou seja lá o que for. O que vem depois, como a educação recebida, o meio em que se vive, ou as discriminações sofridas, é que vão determinar a capacidade de cada um em exercitá-la. Compreendeu?

– Não! E vou lhe provar que estou com a razão. Você conhece o doutor Aiai, um homem extremamente polido e educado, não é mesmo? Pois outro dia mesmo ele perdeu a paciência com um tal de Nico da Ciaba, lá de Grota Funda, só porque o coitado do homem queria saber direitinho como usar o remédio que lhe havia sido receitado, já que tinha dúvida sobre como fazer isso. O Aiai perdeu a paciência e andou falando uns troços pesados, o que deixou todo mundo de boca aberta.

– Não acredito!

– Pois é verdade.

– Então me conte como foi essa história.

E o Júlio César contou. Acontece, disse ele, que o Nico estava sentindo fortes dores nas costas, e como elas não passavam de jeito nenhum, apesar das compressas de água quente com sal que a mulher lhe fazia no local, de hora em hora, ele resolveu ouvir os conselhos dela e tratou de procurar o médico em Periquitinho Verde. Só que a Ciaba fez questão de ir junto, porque nesse negócio de saúde ninguém sabe o que pode acontecer, não é mesmo? Chegando ao hospital, ele marcou consulta com o clínico, esperou chegar a sua vez, e quando foi chamado entrou no consultório deixando a mulher esperando do lado de fora. Lá dentro, o doutor Aiai o examinou com cuidado durante algum tempo, e ao final do exame lhe disse:

– Não é nada grave, só uma inflamação pequena. Chegando em casa, trate de colocar esse supositório e aí tudo vai ficar bem.

– Brigado, dotô – disse o Nico, e retirou-se da sala.

Ao vê-lo sair, a Ciaba foi logo perguntando:

– E aí, Nico? Como é que foi a consurta, homi?

– Uai, Ciaba, o dotô disse que eu perciso usá esse negóço aqui… Se chama “supoistório”!

– Mais cumé qui si usa isso, homi?

– Uai.. – disse ele, colocando a mão na cabeça. – Sei lá, sô!

– Intão ocê vai vortá lá! Nóis tá pagano, não é memo? Intonce ele vai tê tem qui ispricá direitinho cumo é qui se faz.

– O homi vai ficá brabo.

– Qui mi importa! Vai lá i num recrama.

O Nico relutou, mas foi. Bateu na porta, pediu licença, entrou e perguntou:

– Dotô, mi perdoa a minha inguinorância, mas ondi foi memo que o sinhô mando colocá o supoistório?

– No reto. Supositórios devem ser colocados no reto.

– Brigado, dotô… – disse ele novamente, saindo da sala.

 – I aí, Nico? – perguntou a Ciaba.

– Eu perciso colocá isso aqui no reto – disse ele.

– Mais ondi é que fica esse negóço, Nico?

– Uai… I eu é que sei!

– Mais ocê ta pagano, homi. Ele tem qui ispricá tudo direitinho, tintim por tintim. Vorta lá e prigunta.

– Mais o homi vai ficá brabo, Ciaba.

– Vai logo, Nico. Não mi embruia.

E lá estava o caipira de novo na sala do médico.

– Ondi é memo qui tem qui colocá o troço qui o sinhô mandô, dotô?

– No reto – explicou o doutor Aiai, calmamente – No final da coluna cervical…

– Brigado, dotô! — e saiu da sala.

– Pronto, Ciaba – ele disse à esposa – É só eu colocá o supoistório no reto, qui fica no finar da coluna cervicar!

– Mais que tar de cervicar é essa?

– Ih, isso aí eu já num sei…

– Intão vorta lá, homi! Vortá lá e prigunta!

E lá se foi ele mais uma vez atrás do doutor.

– Dotô… Mi discurpa di novo … Mais onde foi memo que o sinhô falô pra infiá o negocinho?

– No c…, homem! No c…! Enfia no c…, entendeu?

Aí o Nico saiu da sala meio sem jeito, pegou a esposa pelo braço e pôs-se a andar com ela rumo à porta de saída, apressado, mas quem estava por ali escutou perfeitamente quando ele comentou:

– Viu, Ciaba… Eu num falei que o homi ia ficá brabo?

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