ESTATUTO MUNICIPAL DE 1895

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ESTATUTOA elevação à categoria de cidade, em 24 de maio de 1892, das vilas-sedes de comarcas do Estado de Minas Gerais, incluiu a transformação da Vila de Santo Antônio dos Patos em Cidade de Santo Antônio dos Patos. Assim, intensifica-se a vida política local. Entre setembro de 1892 e novembro de 1895 foram promulgadas dezenove leis e seis resoluções, que, em geral, tratam de dotar o município e, principalmente a cidade, de melhorias que reflitam o desejo de modernização, progresso e fuga do isolamento em todas as suas dimensões. Preocupa-se, sobretudo, com a instrução, os transportes, as comunicações, a saúde pública e abastecimento. O maior interesse recai sobre a Lei n. 17 de 14 de Maio de 1895, que constitui peça fundamental para se compreender a formação da cidade de Patos, vigiada pelos olhos atentos da moral, do decoro e dos bons costumes. Trata-se do “Estatuto Municipal”, compreendendo 292 artigos, que abordam as mais variadas questões, ligadas à disciplinarização do espaço público intimamente colado ao sentido conservador da moral. Na verdade, o Estatuto Municipal é um código de posturas ainda mais detalhado que o de 1876.

O Estatuto Municipal está disposto da seguinte forma: Parte 1.ª – Título I: “Da Organisação do Municipio” – Secção I: “Das funcções deliberativas” – Secção II: “Das funcções Executivas”; Título II: “Dos Districtos e Sua Organisação”; Título III: “Da Assembléa Municipal”; Título IV: “Da Fazenda Municipal”; Parte 2.ª – Título I: “Serviços Municipaes”; Título II: “Das Povoações”; Título III: “Da Hygiene e Salubridade Publicas”; Título IV: “Da Viação Publica”; Título V: “Da Tranquillidade e Segurança Publicas”; Título VI: “Do Decoro e Moral Publica”; Título VII: “Dos Tapumes”; Título VIII: “Lavoura”; Título IX: “Da Pesca e da Caça”; Título X: “Das Aferições dos Pesos e Medidas”.

O Estatuto Municipal mostra a constante preocupação do poder público com a aparência da cidade, incluindo o desejo de se edificar e manter ruas e fachadas regulares, passeios, praças, jardins públicos, prédios públicos e particulares e muros bem conservados. Entretanto, esse mesmo poder público também se atenta, dentro da perspectiva da planificação urbana, para os modos, moral e decoro públicos. As preocupações vão além da questão estética. Constituem, na verdade, uma operação de aburguesamento da cidade em todas as suas dimensões. Não se pode perder de vista que as camadas governantes procuram vigiar e controlar o crescimento da cidade, evitando que códigos de conduta contrários à moral, ao trabalho e aos bons costumes instalem-se no espaço urbano. As elites locais responsabilizam-se pelo empreendimento, cuja missão é edificar a “cidade civilizada”. Tal proposta, revestida do caráter daquilo que deve ser considerado como “novo”, requer a reformulação dos mecanismos tradicionais, aplicados outrora, para controlar uma urbanização vinculada aos interesses dos segmentos sociais hegemônicos. Novos ritmos são impostos ao cotidiano das pessoas. Novos códigos de conduta são arregimentados em nome da preservação da moral e dos bons costumes. Novas possibilidades de interação e percepção das pessoas, diante dos novos padrões de comportamento, são impulsionadas.

A política modernizante atua através da polícia de costumes, assegurando a cidade como palco ideal para a consolidação do processo capitalista acumulativo, dissimulada nas “forças do progresso”. Até mesmo o domínio das forças naturais como resultado do desenvolvimento tecnológico atuam colaborando e conferindo densidade aos discursos pronunciados pelos segmentos sociais dirigentes. Divulga-se a hegemonia de um modelo de civilização europeu, revestido de otimismo e confiança na ordem pública, no progresso e na racionalidade científica. Nesse sentido, a norma legal como as posturas, por exemplo, há de ser percebida não como um consenso ou vontade geral, mas como as regras que traduzem os interesses de uma dimensão da sociedade que, opulenta e privilegiada, acha-se no direito de preservar a ordem instalada, através da disciplinarização, moralização e vigilância contínuas e simultâneas. É um processo sincrônico. Dentro dessa perspectiva de análise, procura-se o rompimento com as leituras rasteiras e anacrônicas, que concebem o espaço urbano como obra exclusiva dos “benfeitores” da cidade, considerados defensores perpétuos das aspirações locais, negligenciando a participação de outros segmentos sociais.

O Estatuto Municipal de 1895, em sua “Parte 1ª.”, Título I, “Da Organisação do Municipio”, Capítulo VI, “Dos Serviços Municipaes, lista os serviços de responsabilidade do poder público municipal. Percebe-se a presença das instituições de poder vigilantes pela manutenção da ordem “convenientes ao bem público”. São serviços municipaes: A policia municipal; a abertura, alinhamento, nivellamento e calçamento das ruas, praças, estradas e outros logradouros públicos; o asseio das ruas, praças e mais logradouros públicos; o preparo de jardins publicos e arborisação das ruas, praças e logradouros públicos; o abastecimento de agua potavel ás povoações; a illuminação publica; o serviço telegraphico e telephonico do municipio; a salubridade publica, prescrevendo as regras de hygiene aconselhadas pela sciencia; saneamento das povoações; a inspecção de cemiterios, hospitaes, theatros e outros estabelecimentos publicos e particulares, onde se faça ajuntamentos de que possam resultar males á saude e aos commodos dos municipes; feiras, matadouros e mercados; a fundação de hospitaes para doentes pobres, asylos para mendigos, casas de maternidade para parturientes pobres e outros estabelecimentos de beneficencia; a regularisação das construcções particulares no que respeita a segurança, hygiene e embelezamento das povoações. Ao Conselho districtal compete: Promover e auxiliar, pelos meios a seu alcance, a fundação de escolas de instrucção primaria, sugeitas à inspecção de seu agente executivo e ao regulamento da Camara Municipal; crear estabelecimentos de beneficencia para asylo de indigentes, doentes incuraveis, recolhimento de expostos e quaesquer outros fins humanitários.

O Título II, “Das povoações”, em seu Capítulo I, que vai do artigo 155 até 160 dispõe sobre a organização dos planos de urbanização e melhoramentos, bem como as normas a serem observadas. Há uma exigência de se respeitar os “necessarios alinhamentos e nivelamentos”, mostrando a influência da precisão da técnica sobre o esquadrinhamento do espaço da cidade. Art. 156: Na organisação dos planos se guardarão quando possivel fôr as seguintes regras: 1.º – As ruas serão alinhadas cortando-se em angulos rectos de maneira que formem quadrados de 150 metros de lado; 2.º – Terão pelo menos 15 metros de largura e serão niveladas com a necessaria declividade para o escoamento das aguas pluviaes emarginadas de passeios de 25 a 32 centimetros de altura, sobre o nivel da calçada.

O Capítulo II, “Das construcções particulares”, incorpora os artigos 161 e 162, que tratam das condições exigidas pelo poder público municipal para a concessão de licenças, que autorizam as edificações particulares. A concessão de terrenos destinados à construções, nos logradouros públicos, observará o sentido centro-periferia, “evitando que entre uma e outra se inutilisem logares.”A direção do crescimento da cidade, de imediato, já define uma parcela considerável de excluídos em relação à política de melhoramentos públicos. Sem dúvida, os logradouros centrais são o alvo principal, onde a política de higienização do espaço público, revestida de preocupações sanitárias, estabelece a segregação dos múltiplos territórios que compõem a cidade. Além da repugnância em se conviver com as marcas físicas da pobreza, a sua presença no espaço urbano deprecia a imagem de progresso da cidade. A miséria é o atestado que compromete visivelmente a ideologia liberal sustentada na promessa de progresso social. Até mesmo as dimensões dos terrenos devem ser criteriosamente observadas, evitando a construção de prédios, cujos terrenos sejam dotados de frente “superior a uma e meia vez o comprimento da fachada”. Continua, como no Código de Posturas de 1876, estabelecida a preferência na concessão de licenças “aquelle que se obrigar a construir predios em melhores condições de asseio, solidez e elegancia.” Assim, também são estabelecidos os prazos de validade da licença para se edificar.

A modernização urbana constitui-se, de fato, num amplo processo baseado fundamentalmente em estratégias de exclusão social. Dessa forma, prioriza-se e divulga-se uma cidade que se deseja através dos projetos dos governantes. Por outro lado, procura-se deixar nos subterrâneos dos discursos oficiais, oculta e encoberta, a cidade marginal, destituída dos benefícios do “progresso”. As contradições sociais que brotam das relações capitalistas de produção, propulsoras do confinamento de diversas classes no espaço da cidade, são colocadas pelas elites como resultado da incapacidade de ajuste à ordem, inerente à pobreza. Inverte-se e manipula-se a lógica da análise, buscando preservar os parâmetros fundados pela modernidade, que criam condições à manutenção de uma ordem pública propícia à acumulação e reprodução do capital, apesar de relações contraditórias e desiguais. O espaço urbano constrói símbolos de progresso, reais e imaginários, que são apropriados pelas camadas dirigentes e usados como estratégias de unificação e pacificação dos conflitos sociais. A política instrumentaliza o processo de edificação da cidade, colocada segundo os interesses das classes dominantes locais. O conceito de civilização é alargado ou reduzido, de forma a não escapar o comando das mãos das elites dirigentes locais, como instrumento concreto de dominação.

Art. 162: Não serão concedidas licenças para reconstruções de casas que não se acharem nas condições do artigo antecedente bem assim para as que estiverem fóra dos alinhamentos e nivelamentos approvados. Comtudo, poderá ser permitida a conservação das casas que se acharem pelo lado interno dos alinhamentos, ou construcção de novas, se não prejudicarem o embellezamento das povoações e comtanto que os respectivos proprietários colloquem no alinhamento gradis de ferro com pé de pedra, ou outro tapume ornamental, acceito pela auctoridade competente e plante jardins entre a casa e a rua.

Os artigos 163 até 166 versam sobre as características que deverão ter os prédios ou edifícios que se “edificarem ou reedificarem nas povoações” do município. Atentam para elementos arquitetônicos e estéticos como a altura do “pé-direito”, “soleiras”, “symetria” e portas, janelas e claros, ventilação, iluminação, jardins, “quintaes,”segurança e solidez.

Art. 163: Os predios que se edificarem ou reedificarem nas povoações do municipio, ficam sujeitos ás seguintes regras: 5.º – Não são permittidas nas frentes as ruas as construcções de casas denominadas meia-agua e nem cobertas de capim ou de qualquer outras de semelhante natureza.

Art. 164: Podem ser dispensadas das condições do artigo antecedente, quanto a altura do pé direito, as casas construidas no bairro da cidade denominado – Varzea – podendo a Camara, mediante proposta dos conselhos districtaes, dispensal-o em alguns outros bairros ou ruas das demais povoações.

Os artigos 167 até 183 tratam “Dos muros”, “Das calçadas”, “Do embellezamento das povoações” e “Da limpeza das ruas”. A obsessão pelo alinhamento, busca de medidas precisas, mais uma vez aparece conferindo ao espaço urbano os argumentos da racionalidade. Cuida-se de zelar pela construção e preservação de uma cidade com as suas vias públicas limpas e desimpedidas. A regularidade das edificações traduzem embelezamento, aformoseamento e ornamentação. Além disso, corresponde à instalação das condições necessárias para facilitar o asseio das ruas, praças e edificações. Ratifica-se muitas das orientações normativas previstas no Código de Posturas de 1876. São confirmadas as intenções do poder público de “desentulhar” os locais destinados ao trânsito público, canais privilegiados de passagem do capital.

Art. 180: Lançar nas ruas e praças cisco, lixo, aguas servidas e objectos quebrados que possam prejudicar o asseio das ruas, hygiene das povoações: multa de 10$ a 30$000.

Art. 181: Collocar frades de pedra, esteios, estacas, bancos e qualquer outro objecto que possa prejudicar o transito ou trazer incommodo aos moradores: multa de 10$000 a 20$000.

O Capítulo I, “Da hygiene e salubridade publicas”, inserido no Título III e formado pelos artigos 184 até 201, caracteriza-se por expressar sobre os “inconvenientes” que possam prejudicar a saúde pública. Revogando normas contidas no Código de Posturas de1876, agora, já não mais se permite a “creação de porcos pelas ruas e praças das povoações do municipio”. O espaço público deve estar isento de mau cheiro, em conformidade com as normas de assepsia prescritas. Trata-se de uma ampla política de desodorização urbana.

Art. 200: A camara estabelecerá em logar conveniente um lazareto com as accomodações precisas para nelle serem tratados os enfermos de molestias contagiosas.

Art. 201: É prohibida a entrada de pessoas atacadas de bexigas ou outras molestias contagiosas, na cidade e povoações. Os que os conduzirem soffrerão a multa de 10$000 por cadaum. Em relação a “tranquillidade e segurança publicas” as instruções são bastante semelhantes àquelas informadas pelo Código de Posturas de 1876, mencionado anteriormente.

O Título VI, “Do decoro e moral publica”, correspondente ao artigo 234, faz observações no sentido da consolidação e preservação de parâmetros de conduta, necessários aos propósitos da política de higienização do espaço público. Procura-se constituir um espaço privilegiado à reprodução das relações sociais vigentes, moderno e, principalmente, disciplinarizado. Criminaliza-se as divergências para manter o statu quo. Instaura-se a intolerância com intuito de evitar qualquer alteração na situação vigente. É um processo de cristalização das morais conservadoras, em uma sociedade plural, onde certos grupos desejam a manutenção de seus privilégios.

O comportamento moral é próprio do homem como ser histórico, social e prático, isto é, como ser que transforma conscientemente o mundo que o rodeia, que faz da natureza externa um mundo à sua medida humana, e que, desta maneira, transforma a sua própria natureza. Simultaneamente a todo o processo modernizante, são exigidos novos códigos de conduta, baseados no caráter pedagógico da moral, que procura inculcar nas classes inferiorizadas socialmente o temor pela não observância da lei. Diante desta linha de análise, pode-se perceber a importância da moral, estabelecida nas práticas sociais concretas dos indivíduos, que necessariamente cumpre uma função social.

Art. 234: É prohibido: § 1.º – Escrever disticos ou fazer desenhos immoraes ou ofensivos em logar accessivel á vista do publico: multa de 20$ a 30$000 e oito dias de prizão. § 1.º – Tomar attitudes, fazer gestos ou proferir palavras indecentes; apresentar ou vender quadros com figuras obscenas: multa de30$000 e oito dias de prizão. § 3.º – Ter casa publica ou hotel destinado ao exercício da prostituição ou em que seja ella consentida pelo proprietario: multa de30$000 e oito dias de prizão. § 4.º – Imprimir ou distribuir pasquins offensivos a qualquer pessoa ou associação: multa de 30$000 e oito dias de prizão.

* Fonte: Urbanização, Moral e Bons Costumes – Patos de Minas em Fins do Século, de Roberto Carlos dos Santos, Professor de História do Centro Universitário de Patos de Minas-UNIPAM, Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia.

* Foto: Sindojusmg.org.br, meramente ilustrativa.

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